Coluna do Phresidente, nº 87
por PH, em 04 de junho de 2010

COLUNA do PHRESIDENTE PRESTA HOMENAGEM A "TIA" do ELLITE

Certa vez, andando por Ipanema, encontrei o Fabiano Holanda (pai do Guedão), na Visconde de Pirajá, pitando seu cigarrinho e apreciando a moda. Trocamos dois dedos de prosa e, nas despedidas, ele me disse, no auge de sua paixão pelo bairro: "Ph, Ipanema não tem moradores, tem personagens..."

A sábia frase do Seu Holanda poderia ser perfeitamente aplicada ao palco de todas as quartas-feiras do Ellite: o Aterro do Flamengo. É incrível a capacidade do Aterro em produzir personagens, figuras únicas que ajudam a descrever a história do santuário dos peladeiros do Rio de Janeiro.

São dezenas de homens e mulheres que vivem vagando pela área, no entorno dos oito campos do local. Estão o dia inteiro lá. Fazem daquele lugar sujo e mal iluminado o seu escritório de trabalho, a sua sala de jantar, seu banheiro, sua cozinha... Eles moram ali – mesmo tendo suas casas espalhadas pelo subúrbio carioca. Eles até vão eventualmente para casa, mas é ali onde gostam de ficar, é ali, nos campos do Aterro, que eles escrevem a história das suas vidas, trabalhando, conversando, bebendo, fazendo amizades...

Eles são os juizes das peladas, são os vendedores de peixe frito, de água, de cerveja. São os guardiões dos campos: alugam rede, bola, bomba e jogo de coletes. Fazem o que podem para sobreviver, ganhar a vida de forma honesta numa cidade muito difícil – uma cidade partida, como disse certa vez Zuenir Ventura.

A Tia Silvia é um desses personagens que marcam o Aterro. Ela é, em especial, um personagem da história do Ellite. Há muitos anos vendendo água, cerveja e refrigerante no campo 3, ela está sempre lá. Se estiver chovendo, estende uma lona azul por cima da barraca e fica abrigada ali embaixo, ao lado dos seus isopores e do seu radinho, sempre ligado na Radio Globo para nos informar a quantas anda os jogos das quartas-feiras, no campeonato Brasileiro, Carioca, Libertadores...

Com ela não tinha tempo ruim. Era mais assídua que o Chaves, que o Alex. Mais freqüente que o próprio Ellite. Mas a fome dela, não era de bola. Era fome de vida, fome de sobrevivência. A condição miserável e a responsabilidade de cuidar sozinha de duas filhas pequenas seria, por si só, uma boa justificativa para lhe garantir uma aparência sisuda, carrancuda. Mas não com ela. Sempre sorrindo e disposta a ajudar, a Tia era a nossa guardiã no Aterro.

Olhava as nossas mochilas, o nosso material. A bicicleta do Bruno, quando roubaram, não estava ao lado dela. Estava dentro do campo. A do Juninho, ao lado da barraca da Tia, ficou lá, intacta. E ai de quem ameaçasse encostar as mãos nas coisas do Ellite!

Foram muitas histórias...

Certa vez, esqueci minha mochila com o que tinha de mais valioso dentro: o uniforme do Ellite, a camisa 9. Só dei conta quando cheguei em casa, em Copacabana, quase meia noite. Peguei o carro e voltei para o Aterro. Chegando lá, já de madrugada, encontro a Tia dormindo naquela arquibancada suja, toda encolhida debaixo de um pano. "Boa noite, Tia. Esqueci minha mochila aí. Você viu?", perguntei. "Está aqui, Ph, guardei pra você", disse ela, que pouco se importou se eu havia lhe atrapalhado o sono.

Em outra ocasião, Guedão era o técnico do time e me substituiu no meio de uma partida disputada. Saí de campo nervoso e, descontrolado, chutei com força uma cadeira de plástico que ela mantinha ali para os clientes. A cadeira foi longe. Um namorado dela que estava lá veio pra cima de mim tirar satisfação. Tinha toda razão, pensei. Eu podia ter quadrado a cadeira... A Tia não deu nem tempo que eu pensasse em um bom argumento. Ela saiu em minha defesa imediatamente e disse para o cara não se meter. "Ele está nervoso, deixa ele...", disse ela. Eles acabaram brigando por minha causa e eu nunca mais o vi lá.

A Tia era assim. Estava ali para nos ajudar, para nos defender. E ficava feliz quando pagávamos o aluguel da rede, apesar da mesma estar já em petição de miséria, toda rasgada e esburacada. E não era só a rede: ela matava a sede do Marcio, com a cervejinha sempre gelada, vendia a Coca-Cola para o Alex, emprestava cartão amarelo para os juízes que não os tinham, emprestava bola quando faltava. Até gelo ela já emprestou para o nosso churrasco de final de ano.

Se não pudesse pagar na hora, não tinha problema. "Paga semana que vem", dizia ela. Estava ali, sempre nos acompanhando. Via os uniformes novos e comentava sobre cada novidade. Conhecia o time inteiro e tinha um carinho especial por nós do Ellite.

Imagem final

No dia 19 de maio, levamos uma câmera ao Aterro para filmar o jogo contra o Locomotiva (6x6). E enquanto o jogo estava rolando, tive a idéia de filmá-la. Pensei: "Estamos aqui há tanto tempo, ela sempre aqui conosco e nunca tiramos uma foto com ela. Vou registrar uma imagem dela, pois a Tia faz parte da nossa história".

Jogo rolando e o Ellite perdendo. Virei a câmera para ela e disse: "Fala, aí, Tia. Deixa uma mensagem para a gente". De chapeuzinho rosa, sentada na cadeira, ela acenou e disse: "Parabéns pelo time. Bons garotos...". Só isso. Uma mensagem simples, como era a Silvia, chamada carinhosamente por todos nós de Tia. Ela não tinha idade para isso. Era mais nova que o Marreco. Tinha quase a idade da maioria de nós, mas era a nossa Tia do Aterro. Era o retrato de um Rio de Janeiro pobre, sacrificado, mas honesto, trabalhador, simpático e alegre, disposto a ajudar no que for preciso.

Ela morreu de infarto, 12 dias depois das imagens que fiz no Aterro. Andava muito cansada pelas correrias que o Choque da Ordem da Prefeitura a obrigava. Toda vez que eles passavam, ela tinha de desmontar a barraca e carregar aquele peso todo para outro lugar, para voltar algumas horas depois, para o mesmo campo 3, o mesmo lugar, e continuar tentando ganhar a vida como sempre fez. Depois, fechar as contas, fechar a barraca, se ajeitar ali na arquibancada e dormir... Quem sabe, no final de semana, dava para ir para casa dar uma atenção as filhas.

Tinha 36 anos, embora parecesse ter mais pelas rugas que a vida lhe impôs. Estava acima do peso, não tinha dinheiro para se tratar. Comia mal, dormia mal, vivia mal. Mas esbanjava alegria e vontade de ver crescer as suas duas filhas pequenas, que por vezes ela levava para o Aterro. A mais velha, Nicole, torcia e vibrava com os gols do Ellite quando estava por lá.

Mas não deu para a Tia. Infelizmente. Vida que segue. Por mais simples que tenha sido, por mais humilde que possa ter sido a sua vida, a Tia Silvia deixou a sua marca no Aterro, escreveu seu nome na história do Ellite.

Descanse em Paz e continue nos iluminando lá de cima. Tenho certeza que no primeiro jogo após a sua morte (Ellite 13x7 Boca Juniors) você olhou por nós e nos ajudou a obter a primeira vitória com o uniforme novo, vitória que não vinha e tanto nos angustiava. Mesmo sem reservas, perdendo de 3x0 e com um time improvisado, você nos iluminou e conseguimos virar o jogo. Essa vitória é sua, Tia. Você merece. Em nome do Ellite, obrigado por tudo!

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